O OURO QUE CEGA E ENVENENA – SOBRE EXTRATIVISMO E ECOCÍDIO
Em meio à exuberância da floresta tropical Amazônica, o documentário Wildlife (da National Geographic e da BBC), produzido em 1990, dá voz a Davi Kopenawa para que ele dispare: “os brancos não entendem que, ao arrancar minérios da terra, espalham um veneno que invade o mundo e que, desse modo, ele acabará morrendo.”
O xamã yanomami formula uma crítica radical da civilização daqueles que iniciaram a Conquista do continente batizado de América lá pelos idos do século XV e XI: Civilização encabeçada por aqueles que apelida de “o povo da mercadoria”, ou simplesmente “os brancos”, espalhadores demoníacos da fumaça de epidemia e dos ecocídios de vasta escala:
“As coisas que os brancos extraem das profundezas da terra com tanta avidez, os minérios e o petróleo, não são alimentos. São coisas maléficas e perigosas, impregnadas de tosses e febres. Por isso devem ser mantidas onde Omama as deixou enterradas desde sempre.” (p. 357)
Este discurso é bem próximo ao dos movimentos sociais que hoje lutam para que o aquecimento global seja amainado e freado com urgência, o que só ocorrerá se pararmos de queimar loucamente os combustíveis fósseis – carvão, petróleo e gás natural – além de sossegarmos nosso ímpeto feroz que derruba florestas e arranca toneladas de minérios dos subterrâneos da terra.
As palavras de Kopenawa são veículo de uma sabedoria que é urgente de ser reativada neste mundo de cegos extrativistas, em visão de longo prazo nem percepção das interrelações ecossistêmicas. Sabedoria que também se manifesta naquele célebre dito ecosofista: “Quando a última árvore tiver caído, quando o último rio tiver secado, quando o último peixe for pescado, vocês vão entender que dinheiro pode ser comido.”
Talvez este seja um excelente ensejo para esclarecermos um pouco o porquê deste livro – A Queda do Céu – ter sido consagrado como um “acontecimento científico incontestável”, segundo o juízo do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Pode parecer bizarro atribuir “ciência” ao discurso de Kopenawa, mas ele certamente contêm uma ampla reflexão sobre o mundo físico e as modificações que a Humanidade impõem a ele.
Neste sentido, Kopenawa é um pensador da Ciência, ainda que fale de um exterior a ela e de um viés crítico, merecendo seu lugar de honra ao lado de intelectuais ocidentais rompedores-de-ortodoxia como Michel Serres, Edgar Morin, Isabelle Stengers ou Bruno Latour. Quando fala sobre petróleo e minérios, por exemplo, o xamã amazônico junta sua voz ao coro que têm entoado, cada vez mais altissonante, que não sobrará mundo vivível caso sigamos queimando os minérios subterrâneos de que este planeta é dotado.
Buscando a raiz do problema, Kopenawa faz um diagnóstico sobre a civilização dos brancos que equivale a um tratado marxista de crítica ao sistema de produção vigente (creio que Michael Löwy não colocaria censuras a uma classificação de Davi Kopenawa como um dentre os pensadores mais importantes, pelo mérito de suas contribuições, ao desenvolvimento do eco-socialismo).
Sobre a civilização que queima loucamente combustíveis fósseis, que arrasa florestas em busca de pós dourados, que revolve a terra com seus tratores e cobre a terra com cimento, Kopenawa vaticina: “São comedores de terra cheios de fumaças de epidemia. Acham-se todo-poderosos mas seu pensamento é cheio de escuridão.” (p. 358)
Ele não fala por ter lido ou estudado: fala a partir de sua vivência, já que testemunhou muitos garimpeiros invadindo terra alheia na procura desenfreada do ouro. “Vi-os muitas vezes em sonho destruir a floresta toda à sua procura… Os brancos ficam procurando sem trégua… Ainda não estão satisfeitos com as mercadorias e máquinas fabricadas até o momento com os minérios que conseguiram arrancar do solo. Agora querem possuir objetos que não envelhecem e jamais se degradam. Porém, tudo isso vai acabar mal, pois, como eu disse, essas coisas do fundo da terra são muito perigosas.” (p. 359)
Em consonância com os movimentos sociais que hoje pedem pelo investimento em fontes de energia renováveis e limpas, o discurso de Kopenawa é um grito de alerta sobre os rumos do presente. Em sua voz vai um pouco do blues de alguém que já sofreu demasiados lutos e já esteve em batalha contra muitas doenças. Seria insensato de nossa parte não dar atenção a alguém que sobreviveu a tantas tragédias e hoje anuncia de maneira visionária uma imagem-de-futuro que é do interesse comum da Humanidade tomar conhecimento para que a ação coletiva não tarde. Pois a hecatombe ecológica em curso precisa ser encarada com a lucidez e a solidariedade que uma crise sem precedentes exigirá de nós, os vivos. Ainda há tempo? “Há mundo por vir?”
As palavras de Kopenawa, colhidas pelo antropólogo francês Bruce Albert, seu amigo e conviva por muitos anos, oferecem um raio-X sobre tudo o que está errado com a direção ecocida (e em última análise suicida) da civilização “industrial-urbana” contemporânea. Como não tem nenhum comprometimento limitador com os dogmas da ciência ocidental, Kopenawa pode produzir um hibridismo, aliás de efeito muito poético, entre uma física materialista e uma mitologia cosmogônica. Em termos mais simples: ele explica o mundo como um cientista faria, porém embasado nas concepções míticas ancestrais de seu povo, de modo que seu debate-sobre-ecologia acaba também povoado por deuses e espíritos.
“Não foi à toa que Omama soterrou o ferro, o ouro, a cassiterita e o urânio, deixando acima do solo só nossos alimentos. Assim guardados (…) os minérios não representam perigo. Mas se os brancos os arrancarem todos do solo, afugentarão o vento fresco da floresta e queimarão seus habitantes com sua fumaça de epidemia. Nem as árvores, nem os rios, nem mesmo os xapiri poderão conter seu calor. Então, ao ficar sem peixes para comer e sem néctar de flores para beber, o ser sol (…) descerá à terra, enfurecido, para devorar os humanos como se fossem macacos moqueados.” (p. 360)
Nos transes xamânicos inspirados pelo pó yãkoana, Kopenawa tem visões profético-apocalípticas em que o mundo se incendeia. Nada disso soará estranho a quem esteja minimamente consciente sobre o problema global contemporâneo do Efeito Estufa, cujas causas o xamã aponta com justeza: estamos gerando “fumaças de epidemia” ao arrancar da terra minérios que Omama, em sua sabedoria, havia enterrado e que devem permanecer assim, devidamente soterrados, já que são perigosos à biosfera e ameaçam a vivacidade e a fertilidade da floresta. Toda a teia da vida poderá ser rasgada caso continue-se a extrair minérios e petróleo para queimá-los em fábricas maléficas:
“Quando os brancos arrancam os minérios da terra, trituram-nos com suas máquinas e depois os aquecem em suas fábricas. Ele então exala uma poeira fina, que se propaga como uma brisa invisível em suas cidades. É uma coisa de feitiçaria perigosa, que entra nos olhos e vai estragando a vista. (…) A fumaça dos metais, do óleo dos motores, das ferramentas, das panelas e de todos os objetos que os brancos fabricam se misturam e se espalham por suas cidades… Entram nos olhos e invadem o peito. É um veneno que suja o corpo dos brancos das cidades, sem que o saibam. Depois, toda essa fumaça maléfica flui para longe e, quando chega até a floresta, rasga nossas gargantas e devora nossos pulmões. Queima-nos com sua febre e nos faz tossir sem trégua, e vai nos enfraquecendo, até nos matar.” (p. 363)
Sem ser cientista ambiental, Kopenawa descreveu muito bem o processo de poluição ambiental e seus impactos sobre a saúde do planeta: sua revolta é contra os efeitos doentios das práticas econômicas daqueles que queimam em suas fábricas aquilo que arrancam das profundezas da terra. O “povo da mercadoria”, com o pensamento cheio de escuridão, em sua grotesca falta de sabedoria, emporcalha tudo que toca e assim adoece o mundo e todos os “terranos” que vivem nele. A pestilência é trazida pelas “fumaças de epidemia” que Kopenawa sabe muito bem de onde vem:
“os brancos, tomados por seu desconhecimento, puseram-se a arrancar os minérios do solo com avidez, para cozê-los em suas fábricas. Não sabem que, fazendo isso, liberam o vapor maléfico de seu sopro. Este sobe então para todas as direções do céu, até chocar-se com seu peito. Depois volta a cair sobre os humanos, e é assim que acaba nos deixando doentes. Seu veneno é terrível. (…) Agora, os garimpeiros estão empesteando a floresta com os gases de seus motores e os vapores do ouro e do mercúrio que eles queimam juntos… Todas essas fumaças, levadas pelo vento, caem sobre a floresta e sobre nós… disseminam por toda parte febre, tosse e outras doenças desconhecidas e ferozes que devoram nossas carnes. Se o pensamento dos brancos não mudar de rumo, tememos morrer todos antes de eles mesmos acabarem se envenenando com ela!” (KOPENAWA, p. 363)
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Publicado em: 13/10/20
De autoria: casadevidro247
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